Imagine que era presidente do conselho de administração de uma empresa (A) cujo capital social era totalmente detido por outra empresa (B) e que estas empresas integravam o grupo empresarial, cuja empresa dominante (C) tinha o mesmo presidente do conselho de administração da empresa B. Suponha agora que este líder do grupo empresarial, como era prática habitual no grupo há alguns anos, definia pessoalmente as remunerações dos vários administradores das empresas do grupo, ”de modo a que uns não soubessem o que os outros recebiam” e lhe ordenava a si que aumentasse a sua própria remuneração, como administrador da empresa A, devendo dar instruções nesse sentido ao respectivo departamento de recursos humanos. Como deveria proceder? Cumpria a ordem recebida, dando indicação interna para o processamento da sua remuneração actualizada? Sendo certo que seria de esperar que a assembleia geral seguinte, ao aprovar o relatório de gestão e contas confirmaria tal aumento? Ou recusava-se a cumprir a ordem, correndo o risco de se poder considerar que estava a ”quebrar a confiança”, a ser ”avesso” à liderança do grupo e incorrecto para como acionista único da sua empresa? Diz-nos a nossa lei, de modo imperativo, que compete à assembleia geral de accionistas, ou a uma comissão por aquela nomeada, fixar as remunerações de cada um dos administradores, tendo em conta as funções desempenhadas e a situação económica da sociedade. Mas será que faz sentido aplicar estritamente esta norma, que pretende precisamente proteger os accionistas face ao poder de decisão das administrações das empresas, quando foi o próprio acionista único quem deu a ordem? Recordemos os deveres dos administradores. Como seus deveres fundamentais devem observar:
a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e
b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.
Cumpriu tais deveres o administrador que optou por se ”auto-aumentar”? E será tal conduta censurável?
Importa reconhecer algumas simplicidades, que por vezes se ofuscam, na complexidade e nos modos de exercício do poder nas organizações: Apesar de haver uma empresa com domínio total (B) que pode dar instruções vinculativas ao órgão de administração da empresa dominada (A) esta última continua a ter personalidade jurídica e órgãos sociais próprios, nomeadamente uma assembleia geral, com competências exclusivas, em particular em matéria de remuneração dos administradores. Que fazer então se receberem uma ordem nestes termos? Receber o aumento e festejar o momento com os amigos? Festejar com os amigos de certeza, mas só depois de desencadear os procedimentos tendentes à convocação e de uma assembleia geral que validamente delibere a aprovação da sua nova remuneração. Se não o fez, pode vir a ter de devolver tudo o que recebeu sem esta ”cautela” prévia, porque, caso contrário violou os seus deveres como administrador, ao atribuir a si próprio a sua nova remuneração, numa situação clara de conflito de interesses com a sociedade, provocando, nessa exacta medida, um dano à sociedade. E já agora, se tivesse simplesmente cumprido a generosa ordem de se aumentar seria tal comportamento desculpável? Porque estava apenas a cumprir o que lhe mandaram... A concretização do dever de cuidado, que recai sobre o administrador, implicaria que promovesse o respeito pela distribuição interna de competências entre os órgãos da sociedade e, para se por a salvo da violação do dever de lealdade para com a sociedade, ao ”beneficiar” a sua remuneração. Os exemplos ajudam-nos frequentemente a incorporar o conhecimento que muitas vezes não são apreendidos imediatamente através da leitura de elencos de deveres gerais de conduta. Espero que isso aconteça com esta breve nota, e para quem quiser saber mais, aconselho o ”percurso” pelo elucidativo e recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Março de 2014.